quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Do menosprezo ao completo esquecimento



Em memória de João Domingos Serra




Alguns dos factos e opiniões presentes neste artigo já foram por mim abordados anteriormente, neste mesmo Blog no artigo intitulado Uma Família do Alentejo – As Origens de Levantado do Chão. Nesse momento estava, sobretudo, preocupada em contribuir para dar a conhecer João Domingos Serra e, ao mesmo tempo, evidenciar as semelhanças entre o seu livro e o livro de José Saramago, Levantado do Chão.
Dois anos passados, agora que esse plágio já é do conhecimento de muita gente, a minha abordagem é diversa, embora recorra a alguns dos mesmos exemplos.





O livro Uma Família do Alentejo, de João Serra, foi publicado ainda em vida de José Saramago, pela Fundação com o seu nome e com o apoio das autarquias de Montemor o Novo, Vendas Novas, e Junta de freguesia de Lavre.
Em cada uma dessas localidades foi feita uma apresentação do Livro, com a presença de familiares do autor, autarcas, conterrâneos e outras pessoas, de alguma forma ligadas à edição do Livro.

O primeiro contacto que tomei com essa publicação foi na apresentação feita em Vendas Novas
Conto aqui alguns incidentes dessa reunião, não pela sua particular relevância mas apenas para mostrar como foi que me apercebi, desde essa altura do menosprezo de que a obra, o autor e os seus familiares próximos estavam a ser alvos.
Nessa reunião estavam presentes António Serra, filho de João Serra e as suas duas filhas.

A apresentação tinha sido organizada de forma a que algumas pessoas fizessem a leitura de excertos do livro, seguindo-se um debate(?) que seria, pensámos nós, sobre a obra e o autor.
Estranhamente, no entanto, passada a fase da leitura, as intervenções dos presentes encaminharam-se rapidamente para a figura de José Saramago, a sua estadia em Lavre, que tanto terá honrado a população, a sua visita a Vendas Novas, igualmente honrosa, enfim, nada de João Serra…
Um de nós interveio para manifestar a sua estranheza, afinal estávamos curiosos, para saber o que outros pensavam daquele trabalho, mas a conversa estava a centrar-se, apenas, no tão famoso Nobel português.
Foi esta modesta intervenção que veio a desencadear um movimento de ataque/defesa a quem ousava fazer observações que, aparentemente, não estavam no “guião” da reunião e, para as quais, não estavam prevenidos os organizadores.
Foi-nos cortada a palavra, mais do que uma vez, enquanto algumas pessoas começavam a levantar-se, para sair, ofendidas com o nosso atrevimento.
Afinal quem eram estes sujeitos (nós) que ali apareciam com dúvidas, com questões, perante aqueles que tanto se tinham esforçado por editar o livro de João Serra, num gesto magnânimo, cumprindo um desejo, não menos generoso de José Saramago.
Aparentemente, para eles, os familiares de João Serra deveriam estar agradecidos por Saramago ter promovido a edição da obra que tinha dado origem ao seu romance Levantado do Chão. Mas quem é que agradece aqui? Quem usufruiu, ou quem forneceu o material?
Saramago diz que “… O Levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar.” E essa, para mim é a grande verdade, de tal forma verdadeira que, de facto ele nunca pagou. E não foi essa edição, trinta anos depois, que alterou grandemente a situação.

Foi, portanto esta a primeira manifestação de menosprezo de que me apercebi. De então para cá, muitas coisas se disseram e se escreveram, e a procissão ainda vai na praça…

Não me parece necessário continuar a defender que o livro Levantado do Chão de José Saramago copia o livro de João Serra, Uma Família do Alentejo. Neste momento, isso já é um facto, óbvio para quem o quiser ver.

Mas não é sobre esse facto que queria reflectir neste momento.
Gostava antes de demonstrar como João Serra, para além da sua vida de sacrifícios, de injustiças sofridas, para além de ter entregue o seu manuscrito ao “camarada” sem saber que ele, o tal “camarada” ia dizendo para consigo que “… tinha enfim livro”, para além disso tudo, João Serra continuou e continua a ser menosprezado.

* Menosprezado por quem transcreveu a sua obra e a “corrigiu” não cumprindo afinal, os critérios a que Manuel de Gusmão se refere no posfácio da edição.
Na transcrição das duas únicas páginas do manuscrito, cujas cópias foram integradas no livro, podem detectar-se alguns erros, arbitrariedades ou alterações ao texto desnecessárias.
Como exemplo encontramos, logo na primeira página do manuscrito, a seguinte frase: “… Foi a 8 de Agosto de 1972 que me opus a escrever alguns acontecimentos….”
Na transcrição, a palavra opus foi substituída na transcrição por pus. Porquê alterar o significado? J. Serra não queria dizer que se tinha posto, colocado a escrever, mas sim que se tinha oposto, no sentido de confrontado com a dificuldade de tão longa tarefa. Esse termo, ainda hoje, é muito usado, pelo menos no Alentejo
Por essa amostra, apenas podemos imaginar o que terá acontecido a todo o texto. Infelizmente não vamos poder fazer esse estudo, uma vez que não temos acesso ao manuscrito.
E, já agora, porquê transcrever aquilo que Saramago já tinha transcrito? Segundo informação que me foi dada por Arlindo Castanho, que teve oportunidade de o constatar no local, essa transcrição está visível, em formato digital, junto da outra documentação relacionada com Levantado do Chão, na exposição que decorre na Fundação Saramago.

Transcrever um texto, a partir de um manuscrito, é difícil. E ainda se torna mais difícil se existir, como é natural, a responsabilidade de respeitar o autor.
Mas não se está a trabalhar sobre um texto de um autor de alto nível. O texto é de João Domingos Serra, trabalhador rural, Instrução Primária incompleta, necessariamente portanto, uma pessoa com uma visão do mundo limitada (afinal, não tanto assim, pelo conhecimento de demonstra ter da actualidade mundial da época). Pode haver a tentação de corrigir, aperfeiçoar qualquer coisa.
Seria como se um pintor fosse retocar ou restaurar uma pintura de um naïf, que considerasse menor. Das duas uma: ou o tal pintor restaurador era rigoroso e sabia qual o papel que lhe cabia e, nesse caso, limitava-se a retocar uma cor mais desvanecida pelo tempo, um traço interrompido pela corrosão e não ia, a pretexto de tornar a obra mais acessível ao público, ou mais perfeita, alterar o desenho de uma figura, a perspectiva de uma paisagem. Isso faria um outro pintor, esse talvez desonesto, talvez incompetente, com certeza ignorante da sua função.

Volto a dizer que a transcrição de um texto pode ser um trabalho difícil. Quem transcreveu Uma Família do Alentejo é, com certeza, alguém bem habilitado para o fazer e, não sou eu, uma não-especialista que dirá o contrário, nem é essa a minha intenção.

A minha questão é, como disse, o menosprezo.
Menosprezo de que João Serra continua a ser vítima, passados trinta anos sobre a sua morte.
Menosprezo que demonstrou Saramago, primeiro raspando-se de Lavre, “…com o caderno debaixo do braço” sem informar o autor do que pensava fazer com ele; ficando depois três anos a construir o seu livro, mais uma vez sem entrar em contacto, nem com João Serra, nem com os outros trabalhadores que deram contributos para a sua obra. Seria natural que se lembrasse de passar uma vez ou outra por Lavre e desse a conhecer a esses “camaradas” o trabalho que estava a fazer a partir da experiência que partilharam com ele. Bom, era natural se ele, que até tinha sido também um homem do campo, mostrasse reconhecimento e respeito por esses homens, se sentisse que o uso que estava a fazer do trabalho deles era perfeitamente normal.
Afinal, não foi ele que afirmou no seu discurso na Suécia, que o homem mais sábio que conheceu foi o seu avô, que era analfabeto?
Parece-me incontestável que Saramago demonstrou ainda menosprezo por João Serra, quando publicou o livro Levantado do Chão, sem um prefácio que desse a conhecer a fonte que lhe deu origem, referindo apenas o seu nome na dedicatória, entre muitos outros (isto apenas nas primeiras edições), como tão bem refere Arlindo Castanho num texto em vias de publicação.

Quando Saramago decidiu editar o livro de João Serra, foi preciso pedir a António Serra uma da cópia do manuscrito e, é procedimento normal nesses casos, que se elabore um contrato onde fique claro se a propriedade dos direitos de autor permanece no poder dos herdeiros ou se é adquirida pela editora, mediante o pagamento de um valor a acordar entre as partes.
Curiosamente não se estabeleceu qualquer contrato, não se pagaram direitos, mas estes passaram para a Fundação Saramago, (lembra Inês Ramos, em comentário neste mesmo Blog) conforme está registado no livro, pelo que os herdeiros não têm qualquer direito sobre esta edição. Como é isto possível?
Aqui teremos que juntar, ao menosprezo pelo autor e seus familiares, um negócio ilícito? Uma fraude? Estarei enganada?

O livro Uma Família do Alentejo não é um romance.
Pode dizer-se que é um livro de memórias. Um livro que relata as atribulações de um trabalhador do Alentejo e da sua família, em pleno fascismo, em determinado período histórico.
Já sabemos que o autor não tem formação académica, a sua escrita não obedece a formalismos que não conhece, mas ele tem a noção da importância de deixar um relato pormenorizado da dureza e das alegrias possíveis da vida desse tempo, das relações familiares e laborais, dos procedimentos da polícia política e tem, acima de tudo, a capacidade de o comunicar com clareza, de forma a que, mais tarde, os seus filhos e netos, mas também quaisquer estudiosos que se queiram debruçar sobre a história do povo alentejano dessa época, o possam fazer, recorrendo a esse documento fiel que é o seu livro.

Não é pelo facto de não se tratar de um romance que este livro perde o interesse. O seu público, provavelmente, não se dedicará apenas a ler romances, ocupado que está a estudar uma História que é feita pelo sofrimento e pela luta dos povos por uma vida melhor.

Os escultores africanos cujas obras foram roubadas e trazidas para a Europa,  – refiro-me, em particular, àquelas que foram trazidas no início do século passado - também não conheciam as regras que orientavam os artistas plásticos europeus.
Mas não foram eles que sentiram a necessidade de absorver essas regras, muito pelo contrário. Foram os artistas europeus, Picasso e tantos outros que ficaram fascinados com a maneira de representar a figura humana, o seu tratamento dos volumes, a estilização das formas dos artistas africanos.
Quando tomaram contacto com essas obras, copiaram-nas exaustivamente e exploraram esse “novo” meio de representação. Fizeram-no com legitimidade, publicamente, às claras.
Foram publicadas fotografias, editados livros com imagens das esculturas africanas para que fossem devidamente apreciadas por quem as quisesse ver.
A evolução dos estilos artísticos chega, por vezes, a impasses provocados, entre outras coisas, pela influência dos academismos. O papel da arte africana, neste caso específico, foi o de ajudar a provocar um corte nessa evolução, desinibindo os artistas para explorarem um novo filão.
Podíamos falar também do Romantismo e da forma como se apropriou da Arte dita Popular. Esse outro filão permaneceu muito para além desse estilo, manteve-se ao longo do século XX, muitas vezes com a “melhor das intenções” aprimorando as obras populares imaturas, grosseiras, naïves.
Mas não será necessário procurar mais exemplos.
João Serra tinha, portanto, uma forma de escrever não-convencional mas, até essa característica terá sugerido a José Saramago uma libertação da Forma instituída, e, na sequência disso, a “criação” de um “novo” estilo a que veio a chamar de auralidade.
Assim, o trabalho de João Serra, como o de alguns artistas, não é um trabalho estéril. Quero dizer com isto que a sua escrita foi, de alguma forma, influenciar a evolução da escrita de Saramago. Deu frutos dentro da própria organização das frases.
Digamos que o trabalho de Saramago estaria, hipoteticamente, num impasse, talvez provocado pela situação política que se vivia na época, talvez pelas próprias vivências do escritor.
O texto de João Serra ajudou-o a sair desse provável impasse. Suponho que essa dívida será a maior, porque não influenciou apenas o Levantado do Chão, permaneceu nas obras que se seguiram.
Mais um ponto a favor de João Serra.
Menos um ponto para Saramago que, em vez de proclamar aos quatro ventos que estava a desenvolver um novo estilo, porque teve a capacidade de detectar nos textos de J. Serra esse tal filão tão pouco explorado, disse apenas que tinha criado a tal auralidade .
Para não falar da transcrição que terá feito das entrevistas que gravou das conversas com os outros trabalhadores, que estão perfeitamente delimitadas em Levantado do Chão, em particular no capítulo dedicado à história do José Gato.
Foi mais um contributo para o novo estilo. Quem foram os entrevistados?
No posfácio de Uma Família do Alentejo, páginas 277 e 278, Manuel de Gusmão faz esta mesma constatação, sugerindo mesmo a contraprova através da leitura do Livro.

Ao contrário da grande divulgação feita à Arte Africana, que apenas citei como exemplo, o livro de João Serra dificilmente se encontra nas livrarias e não consta na edição qual o número de exemplares impressos.
Nós sabemos que a divulgação dentro das livrarias depende muito dos próprios livreiros, mas se eles tivessem tido a orientação da Fundação Saramago, se lhes fosse comunicado que se tratava do livro que influenciou a obra de Saramago, em particular em Levantado do Chão, não só a divulgação do Uma Família do Alentejo seria muito maior, como o Levantado de Chão seria adquirido pelas pessoas que não o tinham feito antes.

Fica a esperança que alguém com a coragem e os meios suficientes para isso venha um dia a editar o verdadeiro livro de João Serra, transcrito sem preconceitos e, já agora, com o seu título original: Datas e Factos Duma História Familiar e Mistérios da Natureza e Política.
Se isto não se concretizar, virá em breve a última fase do menosprezo: O completo esquecimento.