terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os academismos da actualidade


Os academismos da actualidade


Na segunda metade do século XIX início do século XX, enquanto os movimentos de vanguarda revolucionavam a Arte, proliferavam académicos desesperadamente agarrados às fórmulas neo-clássicas e românticas, por vezes ensinados por verdadeiros artistas (tal como Ingres). Temas retirados da mitologia clássica, composições teatrais, e uma pintura de um apuramento técnico, por vezes irrepreensível, estava lá quase tudo, menos a razão de ser dessas obras, o significado, o valor artístico.
Habituámo-nos a chamar academismos às obras, desse período histórico, mas os academismos estão sempre presentes e, talvez nunca tanto como hoje, ao mesmo tempo que as pesquisas mais inovadoras se vão, arduamente, desenvolvendo na sombra.
Ontem como hoje essas obras são muito bem aceites pelo público, o que não deixa de ser natural. Afinal elas já estão institucionalizadas, estão desprovidas da carga revolucionária, contestatária, inovadora, que caracterizava os estilos que copiam.
O público sente-se até lisonjeado por conviver com obras de arte que não entende, mas que também não o incomodam. Por vezes até são agradáveis à vista, decorativas, mas são, acima de tudo, inócuas.
É por isso que o próprio poder político as aceita e as enquadra na arte pública. É ver objectos minimalistas a embelezar praças públicas, seja nas grandes cidades, seja nas mais periféricas. Há outras a que talvez possamos chamar de neo neo pop, ou melhor, pop fora de prazo de validade, em materiais precários (o que é uma vantagem), infantilmente coloridos (que me perdoem as crianças).
Saem a ganhar os autores desses objectos, que se fazem pagar principescamente, mas saem a ganhar muito mais os políticos que as pagam pois, afinal como propaganda não são assim tão caras e dá-lhes uma imagem de modernidade e de cultura muito conveniente.
Mas os senhores do poder, bem como o público fruidor, precisam de um aval.
Os próprios artistas têm necessidade de dar um enquadramento conceptual àquilo que produzem, mas também de serem lançados no circuito dos compráveis.
É aí que os textos, ou os discursos, sobre as obras adquirem a maior importância, espécie de manual do fruidor, enfim, qualquer coisa que sirva de garantia, que possa ser arremessado ao primeiro incrédulo que tenha a ousadia de dizer: «mas não irá nu, o rei?»
Um destes dias deparei com uma reportagem sobre uma exposição de Design em Berlim, com candeeiros de jovens designers. Dizia o comentador que se tratava de uma piscadela de olho (clin d’oeil) do Design à Arte, uma vez que as obras continham referências simbólicas e, algumas delas, não podiam ser produzidas industrialmente, eram únicas, e ainda porque, digo eu, nem sempre cumpriam com alguns dos requisitos que habitualmente se esperam de objectos funcionais como são, neste caso, os candeeiros.
Só para tentar ilustrar essa ideia, lembro uma colecção de candeeiros, apresentados nessa exposição, feitos em cera e que, naturalmente, com o calor da luz iam derretendo lentamente, pingando gotas de cera, contorcendo-se e deformando-se, criando formas completamente inesperadas.
Mas, até aqui, nada a declarar. Primeiro porque acho que o Design é, ou devia ser, uma forma de Arte. A única diferença, em relação a outras formas de Arte, no Design, como na Arquitectura, é que estas lidam com materiais, formas, dimensões, adequados às funções que vão desempenhar.
Em segundo lugar, porque as propostas mostravam algumas experiências interessantes, a milhas da metodologia de projecto, com uma liberdade de procura de formas que não deve deixar de estar subjacente à criação artística.
De facto, o que me deixou a pensar não foram as obras expostas, mas sim o discurso do comentador. Não que não estivesse à espera daquele tipo de discurso, mais coisa menos coisa: é o do costume. Na Alemanha, em França, em Portugal ou em qualquer outro país, aquele é um discurso padrão.
Não conheço o comentador, nem sequer tomei nota do seu nome, mas também não me parece que isso seja importante. Não pretendo fazer dele bode expiatório de quaisquer culpas, afinal ele teve o poder de me forçar a alinhar as minhas ideias sobre este tema.
Qualquer de nós poderia produzir um discurso semelhante, bastava conhecer a matriz. Com alguma prática, manha e dom da palavra ele sairá mais rebuscado, com os vocábulos que estão mais em voga no meio, deixando de cara à banda os não iniciados.
O mais importante, a ideia que se pretende vender, é sempre a mesma. Trata-se de dourar a pílula, criar uma espécie de descodificação para aquilo que o espectador vê e não entende, mesmo que essa descodificação venha a confundir mais do que esclarecer. Mesmo que a pílula já seja de si dourada, mesmo que a obra valha por si, mesmo assim é preciso criar uma outra obra que acompanhe obrigatoriamente a primeira: o discurso. O discurso qualidade à obra, perante ele o espectador fica a saber que, mesmo não entendendo porquê, a obra é respeitável, faz parte da elite, tal como o seu autor e, claro, o orador.
Mas como é que se constrói esse discurso?
O autor do discurso/texto, colocado perante a obra, deverá antes de mais, certificar-se da sua procedência. Ninguém se arrisca a tecer louvores a uma obra sem saber quem a fez, qual o percurso artístico dessa personalidade, em que meio circula ou, no mínimo, qual o padrinho, aquele que deu o seu aval ao artista e ao seu trabalho.
Numa exposição de jovens artistas, como foi o caso que deu origem a este texto, é o orientador do grupo, o professor, ou mesmo a escola que frequentou ou a galeria que o está a lançar, que vai ter o papel de fiador.
Este primeiro aspecto é indispensável. No entanto, outros não menos importantes são, por vezes, determinantes como pré-requisitos: a classe social a que pertence o artista, o nome da sua família, a Escola em que estudou, os mestres que teve, a nacionalidade, o partido em que vota (se for filiado, tanto melhor).
É com estes dados que se opta por analisar a obra ou, simplesmente, por ignorá-la.
Depois de feito este enquadramento, não da obra mas do artista, torna-se relativamente fácil passar ao texto. Há que procurar alguma semelhança com obras de autores em voga, citar essa particularidade, mencionar a corrente artística em que se inserem, de forma a amparar a obra, integrá-la, dar-lhe razão de existir, e poder, com um mínimo de erro, realizar uma interpretação que surja como adequada. O que já foi dito sobre os consagrados pode ser adaptado ao caso em análise com algumas variantes no que se refere ao dramatismo, carácter social, vigor, dinamismo, esplendor, singeleza, poética… a adjectivação maior ou menor irá depender do grau de reconhecimento já atingido pelo artista ou do interesse que possa haver em promovê-lo.
Bom, mas não tem sido esse o papel dos críticos? Os que inventam os grandes artistas ou ignoram aqueles que, por qualquer motivo, acham mais prudente abafar? São os críticos que habitualmente assumem esse papel, embora hoje em dia essa profissão se esteja a confundir com um conceito mais alargado de estudioso de Arte, investigador, ou com os próprios comissários das exposições.
Pode até acontecer que a análise feita contenha algumas verdades, são evidências numa análise superficial, que pouco interessa se contribui ou não para informar o público. É preciso não resvalar para aspectos mais escorregadios. Assim, a forma como essa obra reflecte, retrata, satiriza ou não o seu momento histórico, a ligação que terá a pesquisas anteriores, bem como a capacidade que possa ter de abrir novos caminhos em aspectos como a representação espacial, a composição ou outros mais ou menos técnicos, a qualidade do desenho, a unidade da obra, a sua coerência, etc., são assuntos que nem chegam a ser abordados.
Mas quem terá então capacidade para fazer essa análise?
Só me parece possível que sejam os próprios artistas, aqueles que tiverem plena consciência do que estão a fazer. Da mesma área ou de outras: artistas plásticos, músicos, cineastas escritores, em qualquer caso, aqueles que se confrontam com um verdadeiro processo criativo estão com certeza muito mais aptos a criticar e a serem criticados com rigor por outros artistas, a partilhar experiências, interrogações, reflexões.
Refiro-me àqueles que estão de facto interessados em desenvolver o seu trabalho seriamente, não aos oportunistas que se dedicam a criar uma mercadoria de acordo com o gosto do mercado actual e, portanto, de êxito garantido, desde que preencha aqueles requisitos a que me referi mais acima, claro.
Esses últimos, por vezes, encarregam-se de louvar a sua criação, apresentando-a segundo os padrões existentes no momento. Eles próprios são incentivados a desenvolver capacidades de oratória e de escrita, desde os bancos da Escola. Se não o tentarem… depois não se queixem. Concorrem com os profissionais da crítica, sobretudo a partir do momento em que se ressuscitou a arte conceptual e seus derivados.
Quando se retoma uma tendência velha como essa, com cinquenta anos, pelo menos (se não contarmos com Marcel Duchamp) nunca pode ser pelos mesmos motivos que ela surgiu no seu tempo. Foi assim que sempre aconteceu com todos os academismos.
No século XX, sobretudo na sua primeira metade, depois dos movimentos do final do século XIX, estavam criadas as condições necessárias para reflectir sobre a própria Arte, dando origem a uma enorme variedade de experiências plásticas. Tudo, ou quase tudo, se pôs em causa e, alguns dos movimentos artísticos daí resultantes deram origem a outros e, a sua influência nas pesquisas subsequentes ainda hoje se faz sentir.
Mas, uma coisa é explorar caminhos abertos por esses pioneiros, seguir ramificações próprias de pesquisas abertas, ou ser influenciado por elas, outra coisa é copiar superficialmente formas, aparências, ideias, que há muito deixaram de fazer sentido.
Porém, as escolas de Belas Artes sempre fomentaram os academismos, no século XIX como na actualidade. Foi nas escolas que, mal foram finalmente afastados definitivamente os academismos vindos do século XIX, (e isso aconteceu já nos finais dos anos 60 do século XX) as pesquisas de carácter conceptual e técnico e os estudos de Arte verdadeiramente sérios foram postos de parte com desprezo, porque não tinham qualquer utilidade na arte actual.
Os academismos prolongam, mecanicamente, os estilos ou tendências para além do seu tempo próprio, utilizando-os como receitas.
Concretizando um pouco mais quanto aos actuais academismos:
Nos anos 60 do século XX a contestação às Artes Plásticas ditas tradicionais, ou seja, aquelas que se manifestavam através da pintura e da escultura, pelo valor mercantilista que se lhes atribuía, levou a uma reflexão sobre a razão da sua existência e a pôr em causa a sua apresentação em museus.
Falava-se da morte da pintura e da escultura, tal como ainda hoje muita gente fala, sem ter em conta que os meios que se utilizam para produzir Arte não determinam, por si só, a evolução da Arte. Hoje é possível pintar através de meios digitais mas, isso não significa a morte da pintura. Seria o mesmo que dizer que o declínio da máquina de escrever tinha levado consigo a literatura.
Uma das formas que assumiu essa contestação foi a Arte Conceptual. Os autores que integravam esta tendência afirmavam que a Ideia se devia sobrepor ao Objecto, que o projecto da obra era mais importante que a sua concretização, podendo mesmo prescindir do objecto. Pretendiam fazer uma arte não artística, isto é, recorrer a meios não artísticos para transmitir a ideia. Um exemplo paradigmático é o trabalho de Joseph Kosuth, One and Three Chairs, de 1965, que coloca lado a lado uma cadeira comum, uma fotografia da mesma cadeira e um excerto do dicionário com a definição de cadeira.
Tal como vinha acontecendo ao longo do século, tratava-se de explorar um outro ângulo da reflexão sobre a Arte, através do caminho que já tinha sido aberto nas primeiras décadas por Marcel Duchamp. Era uma questão premente naquele momento histórico mas, era também uma ideia que, uma vez dita, não havia razão para se continuar a repetir. Mesmo assim, ainda veio a assumir muitas outras formas ao longo dos anos 60 e 70: o mesmo princípio base foi apresentado por meios tão diversos como a Body Art ou a Land Art.
É preciso dizer que estes movimentos estavam muito centrados nos Estados Unidos ou, pelo menos, foram esses os mais divulgados por lá, embora tenham surgido um pouco por toda a parte.
Também é preciso dizer que, reproduzir até à saturação, há 40 anos como hoje, tem uma grande vantagem: é extraordinariamente fácil, não se espera dos artistas que tenham quaisquer conhecimentos dentro das Artes Plásticas. Uma exposição pode ser fabricada de véspera.
Com um bom texto o público ficará a saber que aquilo que ele acabou de ver como, por exemplo, um amontoado disforme de um qualquer material, afinal está carregado de significados, ocultos para a maioria desprevenida e pouco esclarecida, que chama a atenção para um sem número de aspectos sociais da maior importância, que contém um sentido poético inigualável, etc., etc..
Convém ainda dizer que, há 40 anos como hoje, a par destas experiências, coexistem e desenvolvem-se novas formas artísticas dentro da pintura e da escultura, os tais meios tradicionais das artes plásticas.
Uma coisa é, de facto, tradicional nos meios pictórico e escultórico: as ideias que lhe estão subjacentes não estão completas à partida. Dão início ao trabalho e é esse próprio trabalho que se vai fazendo e refazendo, reflectindo sobre si próprio, recriando-se na sua evolução e, no final é então uma obra una e coerente que tem uma linguagem própria, universal, como a música.
Hoje o mundo é bem diferente de há 40 anos. Existem novas realidades, outras acentuam-se adquirindo proporções gigantescas. Um capitalismo apodrecido, mas a espernear vai fazendo ainda mais vítimas, expondo despudoradamente a sua verdadeira face, criando corrupção, insegurança, injustiça social à escala global. 
As cidades são multiculturais e são evidentes os conflitos, mas também a fusões entre essas culturas, dando origem a novas realidades sociais. Os imigrantes tendem a integrar-se, mas integram-se também os autóctones digerindo todos parte da cultura de cada um. Veja-se a música, por exemplo.
São apenas dois exemplos entre os mais evidentes. A Arte não pode deixar de reflectir a realidade do seu tempo.
Como é possível continuar a insistir nas experiências vividas há décadas?
Fala-se em vanguarda e por vezes confunde-se com originalidade, mas a vanguarda está nas pesquisas que os artistas seriamente continuam a desenvolver, absorvendo o fundamental da época em que vivem, sem preocupações com modas.

Faro, 21 de Junho de 2009
Maria João Ramos

sábado, 16 de outubro de 2010

Uma Família do Alentejo - As origens de Levantado do chão



Uma Família do Alentejo
Mistérios da Natureza e da Política


As origens de Levantado do chão

                                                  João Domingos Serra

                                                   Pintura de Noémio Ramos


Uma Família do Alentejo, de João Domingos Serra é a obra que "inspirou" José Saramago a escrever o seu romance Levantado do Chão.
Diz Saramago: o levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, - quando começou a trasladar o escrito de João Serra - quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar.

Que dívida? Ele não explica.
Sobre essa influência, diz também Manuel Gusmão no posfácio de Uma Família do Alentejo: Poderíamos então sugerir que o facto da existência desse manuscrito funciona como uma alegoria parcial e um estímulo desafiante para o Autor em que José Saramago se vai transformar.

É sobre esse livro, Uma Família do Alentejo e sobre a influência que teve em Levantado do Chão, que gostaria de reflectir um pouco.
Não pretendo fazer uma análise especializada de literatura, não o sei fazer. Deixo esse trabalho aos especialistas.
O que aqui vou fazer é apenas de uma reflexão sobre aquilo que considero serem as condições para que uma obra seja considerada de arte, literária ou outra, e também sobre a legitimidade de um autor para utilizar o argumento da obra de outro autor.
Antes de mais convém esclarecer quem foi João Domingos Serra.
João Serra foi um alentejano que nasceu no início do século XX. Nasceu pobre, na vila de Lavre, num tempo em que ser trabalhador rural, ou mesmo ter um ofício, como o de sapateiro ou de abegão ou qualquer outro, não era garantia do sustento das famílias.
Durante toda a sua vida sofreu as misérias resultantes dos magros salários, quando os havia, da busca constante de trabalhos precários sazonais, muitas vezes em terras muito distantes de sua casa, sofreu maus tratos, humilhações infligidas pelos patrões e pelos capatazes, sofreu torturas da polícia política que vigiava de perto qualquer indício de insubordinação dos trabalhadores.
Essa era a forma de vida normal dos trabalhadores rurais do Alentejo. Como ele, muitos outros teriam muito que contar sobre as atrocidades que se cometeram nesses tempos.
Apesar de tudo, João Serra esteve sempre ligado às actividades culturais da sua terra. Participou em peças de teatro, foi bailador exímio, criou e ensaiou, durante vários anos, o rancho folclórico de Lavre.
Onde é que ele foi buscar tempo, forças e ânimo para estas actividades? Certamente tinha uma personalidade criativa, curiosa, insatisfeita que procurava preencher o pouco tempo de descanso de forma gratificante para o espírito.
Quando, por fim, doente, já incapacitado para trabalhar reformado pelos seus filhos, - como ele diz, uma vez que, nesse tempo, não tinha direito a uma reforma estatal - mesmo assim encontrou forças para se dedicar a escrever a história da sua vida, continuando dessa maneira a desenvolver uma actividade intelectual.
A sua obra é um relato detalhado, dramático, um testemunho impressionante de uma época, que contém factos e datas dos acontecimentos mais marcantes para a sua família, relata a vida da família, todas as atribulações por que passaram desde o casamento dos pais até, mais tarde, à vida dos seus próprios filhos, enquanto ele viveu. Mas também integra referências a alguns acontecimentos da história desse período, entre 1904 a 1980, data em que lhe faltaram as forças para continuar. Mas esta obra não é apenas isso.
Mas será que estamos perante uma obra literária?
Será possível afirmar que João Serra tenha produzido uma obra literária, ele, um homem que nem completou a instrução primária, que desconhece as regras, as técnicas da criação literária, que desconhece a própria literatura, que tem uma visão do mundo limitada à sua observação e a pouco mais (as notícias dos jornais e rádio da época visadas pela censura, ou a informação veiculada pelo Avante apesar de tudo, limitada ao campo político)?
Para sistematizar a minha argumentação na apreciação deste livro, senti necessidade de enumerar aquelas que, do meu ponto de vista, são as principais características de uma obra de arte, seja ela literária, musical, pictórica ou outra: basta falar de universalidade, intemporalidade, sentido crítico e autenticidade.
O primeiro aspecto, a Universalidade, encontra-se, na forma como é apresentada, ainda que através de uma narrativa autobiográfica, uma situação que, nas suas particularidades, se pode generalizar à vida do povo trabalhador alentejano dessa época e que, em termos mais gerais, na miséria, nas humilhações e torturas, pode mesmo generalizar-se a todo o povo trabalhador deste e de outros países. Daí que a sua leitura não emocione apenas aqueles que viveram a mesma realidade.
Ao longo do texto vão-se definindo relações humanas, também elas universais, através do carácter das pessoas envolvidas.
Nas passagens mais íntimas como as vividas pelos pais, dentro da sua família, ou nos laços que se foram estabelecendo entre famílias quando a miséria ameaçava destrui-las, vamo-nos apercebendo de como a miséria torna algumas pessoas rancorosas e vingativas com outras, igualmente vítimas, enquanto que a outras pessoas desperta a generosidade e o espírito de entreajuda.
Compreendem-se também as relações de trabalho que se praticavam, pelas descrições de episódios vividos entre ele e os seus companheiros e aqueles que os controlavam, os capatazes.
A Intemporalidade será, talvez, uma componente da universalidade. Ela aqui é óbvia. O tempo relatado é bem definido, também aqui pelos aspectos mais particulares do modo de vida e da situação política da altura, mas a exploração do homem, a ausência dos direitos humanos mais elementares, como sabemos, não começaram nem acabaram nesse tempo. Sendo um testemunho duma época é também um testemunho da exploração de todos os tempos.
Uma obra de arte reflecte sempre o seu tempo, ilustra-o e documenta-o, e por isso permanece como espelho da vivência humana da sua época perpetuando o seu valor.
Encontra-se neste trabalho uma visão crítica da sociedade, não só da sociedade em que João Serra está directamente integrado, como a nível mais geral, o autor aponta problemas graves da política da altura e mostra de que forma essa política influencia a vida da população.
Quando reflecte sobre a guerra de Espanha e a segunda guerra mundial diz, a dada altura E então o leitor vai saber porque é que eu, narrando acontecimentos da guerra mundial o que quero é cingir-me à liberdade do Povo humilde e democrata; e como digo e deveis saber, eu corria todos os dias do trabalho até à vila para ouvir a rádio na BBC de Londres contra o Hitlerismo.
A autenticidade provém de uma necessidade de compreender e de transmitir o que é vivido, sentido, imaginado, observado. Não está sujeita a concessões de qualquer espécie. Não se transmite o que é conveniente social ou politicamente, nem com o fim de alcançar prestígio, ou lucros de qualquer ordem.
Foi a necessidade de transmitir o seu testemunho, nem que fosse apenas aos seus filhos, que João Serra sentiu. Ele próprio o disse.
Mas não terá sido apenas isso. Como qualquer outro verdadeiro escritor, ele terá compreendido que, ao organizar as suas memórias, revivendo-as através da escrita, estava a aprofundar a sua compreensão dos factos que viveu e conheceu. A escrita ajuda a compreender a realidade, a entender como ela se organiza, ajuda a relativizar as proporções dos acontecimentos, acomoda-os na memória, devidamente redimensionados e, finalmente, transmite o resultado de todo esse trabalho.
Em todos estes aspectos o autor revela Inteligência: Humor, Sensibilidade.
Como reforço do dramatismo de algumas situações descritas usa metáforas, aplica ditos populares, ironiza, adjectiva, embora usando por vezes vocábulos que poriam os cabelos em pé aos puristas da língua mas que, até pela sua inadequação, dão uma maior intensidade ao texto.
Enumero, entre outras, a situação tão dramática que viveu quando, ainda criança que mal podia com o enxadão foi trabalhar para o campo, sob as ordens de um capataz tirano e sádico, o Manuel Cachola, e diz que ele: quando saía de sua casa ou do quartel, deixava o coração pendurado atrás da porta. E, noutro momento, referindo-se a si próprio mas não tardaram muitos dias que eu não fosse um passarinho nas unhas de um gavião. Mais adiante, quando o padrasto lhe comprou uma capa alentejana, aplica o ditado: Fiquei mais contente que um gato cheio de varadas.
Quando se refere a informações que ia tendo sobre os acontecimentos mundiais, em particular sobre o efeito que a revolução socialista começava a ter no mundo, que bulia, em maior ou menor escala, com a paz instituída, diz: a burguesia começou por se engripar com as rajadas de vento de leste. Ou, noutro momento, justificando o seu acordo forçado em participar num comício fascista, diz: o José Catita foi a minha casa para eu assinar o meu nome para a conta dos que eram convidados para ir a Évora ouvir o comício anticomunista, e como o medo é que guarda a vinha, não tive outro remédio lá assinei o meu nome.Noutra altura, quando conta que tomou a decisão de roubar a Júlia, sua namorada, para que fossem viver juntos, diz: esse roubo era uma corda que eu ia lançar ao pescoço.Ou ainda, referindo-se ao dono da loja que já não aceitava fiar o seu avio: A resposta do senhor de avental de tábuas foi a mesma.

Estas e muitas outras imagens enriquecem a narrativa que, já de si, não era apenas uma enumeração cronológica dos factos.

Será que é mais importante uma boa Forma já estabelecida e aceite pelas elites culturais (literária, neste caso) do que as qualidades que enumerei?
E porque é que a Forma é tão importante, tão determinante para a atribuição de valor às obras dos plebeus da literatura?
A história está cheia de exemplos de artistas sem instrução académica, sem conhecimento de técnicas já estabelecidas próprias da arte que praticaram, vivendo num meio fechado, com uma visão limitada do mundo e que, apesar de tudo isso, foram apreciados e reconhecidos pelo seu trabalho.
Habitualmente são agrupados dentro do mesmo saco, sob a designação de naifs, ingénuos, artistas menores e, dessa forma, paternalmente acarinhados pelos artistas a sério, os eruditos, os que detêm o conhecimento que tantas vezes lhes custou muitas pestanas queimadas, e, em alguns casos, muitas concessões, nem sabemos quantas nem quais.
É que essa designação de naifs ajuda a dar menor importância a esses artistas, relativamente aos artistas a sério, aos eruditos.
Parece haver uma espécie de aristocracia intelectual, só que a esta não se acede pelo nascimento, mas por uma integração no meio literário, que, por vezes, não é menos restrito que o da outra aristocracia.
Muitos desses eruditos chegam mesmo a dizer que usam temas e trechos de trabalhos dos tais artistas populares para com eles fazerem obras formalmente mais bem construídas, mais sérias, mais eruditas.

Cabem aqui mais três esclarecimentos quanto aos meus pontos de vista.
1º Para mim, esse saco de naifs criado pelas elites contém bons artistas, outros menos bons e mesmo aqueles que nem artistas são.
Por exemplo, muitas vezes, quando falam de poetas populares põem ao mesmo nível um António Aleixo e todos os outros, sem distinção, porque os consideram a todos menores.
António Aleixo também mal sabia escrever, mas a profundidade da sua obra, sob todos os pontos de vista, é hoje incontestável. Valeu, nessa altura, a acção do doutor Joaquim Magalhães que, quando conheceu o Aleixo, compreendeu o seu valor, acompanhou-o, estimulou-o e publicou a sua obra. O mesmo podia ter acontecido com João Serra se, em vez de ter conhecido Saramago, tivesse encontrado um Dr. Magalhães ou qualquer outra pessoa sensível ao seu trabalho e honesta.
2º Parece-me também evidente que, entre aqueles que são considerados artistas maiores (escritores, poetas, outros), munidos dos seus graus académicos, malabaristas da Forma, há muitos níveis de qualidade, dos muito bons aos muito fraquinhos e mesmo também aos que não o são de todo…
Também há os que subvertem as regras, subestimam-nas, criam novas formas. Ainda bem que os há.
3º Que uns possam influenciar outros, sendo uns e outros maiores ou menores, é um facto bem documentado através da história, em todas as formas de arte. Na pintura, entre outros, a fase negra do cubismo de Picasso. Na música, encontramos uma imensidão de exemplos de influência popular, como em Lopes Graça, Béla Bartók, etc.
Em todos os casos dignos de registo os influenciados divulgam essa influência e, por vezes, fazem questão de demonstrar a forma como souberam fazer evoluir a sua arte através do estudo das obras que lhes serviram de ponto de partida.
Saramago conhece as regras, estudou-as, não tanto nos bancos da escola, mas nos livros que leu - ele é um autodidacta - tomou conhecimento das técnicas da escrita, pelas diferentes obras a que teve acesso. Foi jornalista e crítico literário, antes mesmo de ser escritor (!) (uma vez que não inclui na sua vasta obra o livro que publicou em 1947 "Terra do Pecado"). A partir de Levantado do Chão, depois de ter lido João Serra, também ele violou as regras formais da escrita, ao inventar a sua auralidade, muito bem explicada por Manuel Gusmão no posfácio a Uma Família do Alentejo: Esta auralidade, a audibilidade do oral marcando o escrito, é algo que, podemos supor, José Saramago se apercebeu na leitura do texto de João Domingos Serra.

Ou seja, Saramago passa a aplicar e desenvolve, uma forma de escrita que lhe foi sugerida no manuscrito de João Serra e não só. As transcrições de gravações de entrevistas feitas a outros trabalhadores alentejanos, como João Besuga, acrescentam uma riqueza de pormenores àquilo que passou a chamar de auralidade. Essas transcrições, que estão intercaladas em Levantado do Chão, são facilmente identificáveis e estão perfeitamente delimitadas. Só quem nunca assistiu a uma boa conversa numa qualquer taberna no Alentejo, ou à volta da lareira, numa noite de Inverno, terá dificuldade em as reconhecer. Eram conversas ao desafio, com vários narradores de façanhas, outras em que apenas uma pessoa conseguia prender a atenção de todos, temperando a descrição de factos vividos com alguma fantasia.
Quanto ao argumento de Levantado do Chão, ele é constituído por uma reprodução de grande parte da narrativa de João Serra, romanceada e intercalada com as histórias escutadas, gravadas e transcritas de conversas com outros trabalhadores. Tudo isto envolvido, aqui e ali, por uma ficção deslocada quinhentos anos para um passado, de outros episódios do mesmo latifúndio, ou de descrições de paisagens. Aliás são perfeitamente distintos os três tipos de escrita: aquela que é retirada do manuscrito, as transcrições das gravações, onde também os nomes terão sido substituídos - o capítulo em que conta a vida do José Gato, por exemplo - e a envolvente romanceada.
As coincidências nos dois textos são constantes, sobretudo nos diálogos, alterando-se apenas os nomes das personagens, de lugares e da própria terra: Lavre passa a Monte Lavre.
Apenas alguns episódios são anulados ou resumidos, outros alterados, como o suicídio do pai de João Mau-Tempo, Domingos Mau-Tempo, que não aconteceu no original. No entanto, não são de grande monta esses cortes ou alterações
Apresento aqui algumas dessas transcrições. Elas são muitas mais, mas, pela amostra, parece ficar bem patente a forma como foi usado o texto original.
Na coluna da esquerda está o texto de João Serra e, na da direita, o de Saramago.




Texto transcrito de Uma Família do Alentejo


Texto transcrito de Levantado do Chão


Pág.42 (…) Meu pai, peço-lhe um favor, pelo amor de Deus que me venha buscar com os seus burritos e o carro para junto de si, para Lavre, para a minha terra. Peço-lhe que me perdoe, pelo amor de Deus pelos trabalhos e desgostos que lhe tenho dado, peço-lhe a sua resignação com o arrependimento de não obedecer aos seus conselhos para não realizar este meu infeliz casamento com este homem que tantas amarguras me tem causado, tudo o que de pior tenho sofrido, miséria e desgostos e pancada (…)


Pág.40 (...) Meu pai, pelo amor de Deus lhe peço me venha buscar com os seus burritos e o carro, para o pé de si, para a minha terra, e me perdoe os trabalhos e desgostos que lhe tenho dado, também a sua resignação, com o meu grande arrependimento de não obedecer aos conselhos que tantas e tantas vezes me deu, que não fizesse este infeliz casamento, um homem que só amarguras me tem dado, do pior tenho sofrido, misérias e desgostos e pancadas (...)


Pág.62,63 (...) Quando ia passando pelo moinho, e que a mulher do Alvarenga me viu, diz-me: «Então João para onde vás?» «Ora, vou para o Pedrógão arrancar mato.» Responde-me a senhora Filipa, que era minha parenta: «Ai coitadinho! Tu não podes com o enxadão e o mato é tão grande.» E eu lhe respondi: «seja o que Deus quiser, vou experimentar para ajudar a minha mãe, coitada, pois a nossa vida é como vossemecê sabe. E olhe o meu irmão Mário, vai pedir uma esmola por amor de Deus para depois me levar alguma coisita de comer adonde ando a trabalhar, porque a minha mãe não tinha dinheiro para comprar o avio.» (…)


Pág.52 (...) Sai-lhe ao caminho a mulher do Picanço, e diz-lhe, Então, João, para onde vás. Responde o dos olhos claros, Ora, vou para a Pedra Grande arrancar mato. E a Picança, Ai coitadinho, tu não podes com o enxadão e o mato é tão grande. (...) Seja o que Deus quiser, vou experimentar para ajudar a minha mãe, coitadinha, porque a nossa vida é o que vossemecê sabe, e o meu irmão Anselmo vai pedir uma esmola pelo amor de Deus para depois me levar alguma coisita aonde eu ando a trabalhar, porque minha mãe não tem dinheiro para comprar o avio. (...)


Pag.66 (…) Este homem, quando saía da sua casa ou do quartel deixava o coração pendurado atrás da porta (…)


Pag.54 (…) Quando Gregório Lameirão saía de casa, ou do quartel, deixava o coração pendurado atrás da porta e ia mais leve (…)


Pág.67,68 (...) Minha mãe não sabia o quanto eu sofria nas garras daquele carrasco (...) e eu ocultava este segredo (...) porque a escravatura nesse tempo assim nos obrigava, com a disciplina usada nessa data (...) «Vê lá, olha se não andas na linha dou-te uma sova, olha que temos que olhar para a vida» (...) e então ressurgia de vez em quando esta cantiga do capataz: «Ó Serra, olha que a tua mãe me disse que só queria de ti os ossos para fazer uma cadeira e a pele para um tambor.» E eu julgava ser verdade o que o capataz dizia e então não dizia à minha mãe (...) Mas quando terminou o trabalho, um dia por conversa lhe contei tudo, e minha mãe murmurou, dizendo: «Maldito Homem! Pois se eu não lhe disse tal coisa!» Todos os opulentos fazem pouco da miséria, esse dragão nem aos filhos tinha amor. (...)


Pág.55 (...) Eram bons tempos esses para a disciplina. Sara da Conceição, com razão remordida dos maus exemplos do marido (...) pregava a todo o instante e hora (...) Vê lá, olha se não andas na linha, dou-te uma sova, temos de olhar pela vida. Isto lhe dizia a mãe, e o Lameirão reforçava, Ó Mau-Tempo, olha que a tua mãe disse-me que de ti só queria os ossos para fazer uma cadeira e a pele para fazer um tambor. (...) que mais faria João senão acreditar (...) abriu-se com a mãe (...) Maldito homem, que lhe não disse tal coisa, dá uma mãe um filho à luz para isto, todos os opulentos fazem pouco da miséria, nem aos filhos tem amor esse dragão. (...)


Pág.76 (…) Ficámos quatro livres na inspecção e só eu era o entristecido. (…)


Pág.63 (…) Foram uns quatro apurados, e dos quatro que ficaram livres, só um vinha triste. Era o João Mau-Tempo. (…)


Pág.84 (…) Não tens vergonha, minha grande desavergonhada, tantos conselhos e pancada não te serve de nada, teimas sempre à mesma? (...)


Pág.67 (…) E disse Natividade, que o nome era esse. Não tens vergonha, Faustina, que nem conselhos nem pancada te servem de ensino, grande teima a tua, que será da tua vida (…)


Pág.85 (…) Júlia, temos que acabar com isto. Das duas uma: ou acaba o nosso namoro para tu não sofreres mais ou se quiseres vens comigo para a casa da minha mãe até eu formar casa, pois farei tudo o que puder por ti (…)


Pág.68 (…) Temos que acabar com este viver, ou finda o nosso namoro, para não sofreres mais, ou vens comigo para casa da minha mãe, até eu poder formar casa nossa, e de hoje em diante farei tudo o que puder por ti. (…)


Pág.85 (…) João, para onde tu fores vou eu também, se me prometeres dar-me carinho e fazeres por mim para sempre (…)


Pág.68 (…) João, para onde tu fores irei eu também, se me prometeres dar-me carinho e fazeres por mim para sempre (…)


Pág.85 (…) Júlia, apartemo-nos um para cada lado, e depois lá na vila falamos a combinar a hora em que havemos de abalar, está certo? (...)


Pág.68 (…) Farei tudo o que puder por ti enquanto formos vivos, na saúde e na doença e agora apartemo-nos, vai cada um por seu lado, e quando chegarmos à vila encontramo-nos para combinar a hora a que havemos de abalar. (…)


Pág.85 (…) Gertrudes, olha, vão caminhando para o Monte dos Frades que eu vou lá mais para a noite. Vocês vão agora, que ainda é cedo, e digam à mãe se me dá licença de eu levar a minha rapariga para casa, que eu depois falo com a mãe. (…)


Pág.68 (…) Vão indo para o monte e digam à mãe que eu vou levar a minha rapariga para casa, que conto com a licença dela e que depois lhe falarei e explicarei tudo. (…)


Pág. 86 (…) Manas, tenham lá paciência, isto são coisas da vida. (…)


Pág.69 (…) Manos, tenham paciência, isto são coisas da vida. (…)


Pág. 86 (…) Tia, peço-lhe um favor, se me deixava vir aqui ter a Júlia comigo, à sua casa, para depois abalarmos para o Monte dos Frades, para a casa da minha mãe. (…)


Pág.69 (…) Tia, peço-lhe o favor de deixar que a Faustina venha aqui ter comigo à sua casa para depois abalarmos para o Monte de Berra Portas, para a casa da minha mãe. (…)


Pág. 87 (…) Vocês têm uma viagem tão longe e vai estar uma noite escura e de chuva. Olhem, tomem lá este guarda-chuva e um bocado de pão e chouriço para comerem pelo caminho… E agora tenham juízo para se orientarem, já que fizeram esta graça, sem graça nenhuma. Vá lá, já agora que Deus vos ajude. (…)


Pág.70 (…) Vai ser uma viagem de grande canseira e a noite será de água e muito escura, tomem lá este guarda-chuva e um bocado de pão e chouriço para comerem pelo caminho, e tenham juízo para se orientarem no futuro já que fizeram esta graça (…)


Pág. 104 (…) Assim que entrámos na Rua Augusta, com muito movimento e nós sem prática de andarmos em Lisboa, já andávamos envolvidos na multidão. Não tardou que o meu irmão Domingos não andasse agarrado à minha mulher, a puxá-la, com medo que ficasse atropelada pelos eléctricos; e então caíram os dois no passeio. Foi o primeiro espectáculo que apresentámos aos lisboetas, pois comecei a ouvir gargalhadas, e diziam em bom som, repetidas vezes «Ah Manel, ah saloios». Eu estava como a correia no lume, envergonhado. (…)


Pág.77, 78 (…) depois entraremos por essa rua do arco, é a Augusta, tanto movimento, e nós sem prática destas calçadas, todo o tempo a escorregar no estupor das cardas e a puxar-nos uns aos outros com medo dos eléctricos e lá caíram vocês dois, uma risota para os lisboetas. Eh saloio, eh Manel. (…)


Pág. 110 (…) À noite, numa cabana que era o nosso abrigo, deitados numa cama de carqueja com umas palhinhas por cima, assim descansávamos o nosso corpo atormentado; toda a noite se ouvia gemer, pois era assim que o patrão gostava de ouvir. (…)


Pág.80 (…) Para descansar, se tal verbo tem cabimento, deitam-se numa cama de carqueja com palha por cima, e pela noite fora gemem, sujos, pisados (…)


Pág.141 (…) «Senhor Constantino, fazia-me o favor de me aviar, mas olhe que eu esta semana não lhe posso pagar o avio todo, porque fiz uma semana ruim. Depois em ganhando mais ordenado pago-lhe tudo, esteja descansado que não lhe fico a dever nada.» Imediatamente me respondeu «Não senhor, não lhe fio nada!» Depois de me apanhar todo o dinheirinho que eu tinha posto em cima do balcão é que me deu esta resposta com desespero. E eu com toda a calma «Senhor Constantino não me faça uma coisa dessas! O que dou de comer aos meus filhos? Tenha dó de mim, então apanhou-me o dinheiro e fico sem dinheiro e sem comer?» E ele me respondeu «Eu não quero saber não lhe fio mais nada e ainda me fica a dever muito!» «Ó senhor Constantino, por favor, ao menos dê-me o avio só no valor do dinheiro que pus em cima do balcão para me remediar, para dar alguma coisa de comer aos meus filhos até que arranje outro rumo.» A resposta do senhor do avental de tábuas foi a mesma «Não lhe posso fiar mais nada, já lhe disse, esta quantia que recebi agora não dá para pagar a quarta parte do que me deve». (…)


Pág. 83 (…) Senhor José, fazia-me o favor de me aviar, mas olhe que eu esta semana não lhe posso pagar o avio todo, porque fiz uma semana ruim, depois em ganhando melhor ordenado pago-lhe tudo, esteja descansado que não lhe fico a dever nada. Não senhor, não lhe fio nada! Mas antes que tal resposta fosse dada, a mão do merceeiro recolheu, foi um rapa, o dinheiro todo que para o abrandar eu pusera em cima do balcão, e depois é que respondeu. E eu disse, com toda a calma que podia e Deus sabe qual, que pouca era Senhor José não me faça uma coisa dessas então o que vou eu dar de comer aos meus filhos? E ele disse Não quero saber não lhe fio mais nada e ainda me fica a dever muito. E eu disse Senhor José, por favor, ao menos dê-me o avio no valor do dinheiro que me tirou, só para remediar, para dar alguma coisa de comer aos meus filhos até que arranje outro rumo. E ele disse Não lhe posso fiar mais nada, esta quantia que recebi nem dá para pagar a quarta parte do que me deve». (…)


Pág.154,155 (...) «Então, Sr. José Arnaldo, o que quer de mim? «Não é nada de importância, Senhor Serra é para deslindar uma coisa de dois gajos que foram roubar uns molhos de grãos. É para servir de testemunha em como eles não roubaram nada a ninguém, olhe, é uma trapalhada que eu não compreendo», «Mas que tenho eu com isso, não fui visto nem achado em coisas algumas dessas», respondi eu ao guarda, e a autoridade me respondeu, «Não tenha medo, chega e diz o que tem a dizer e vem embora» (...) «Então o Senhor não sabe o que fez lá para Vendas Novas?», «Eu, Senhor cabo? Há dois ou três anos que não vou a Vendas Novas, isso deve de ser engano, concerteza», - Pois está cá uma ordem do posto da guarda republicana de Vendas Novas para o prender como comunista», «Ó Senhor, não me diga tal coisa, pois eu já desisti dessas barafundas há quatro anos» (...) «Então, Senhor Cabo, fazia-me o favor mandava dizer à minha mulher para vir falar comigo?», e o guita imediatamente me respondeu, «Não senhor, a sua mulher não pode falar consigo, nem ela nem mais ninguém, você está com um título de perigoso, diga o que quer que vai lá uma praça buscar-lhe o que precisa da sua casa». (…)


Pág. 234 a 237 (...) Então, senhor José Calmedo, que me quer, isto pergunta João Mau-Tempo (...)Não é nada de importância, é só para deslindar um caso de dois tipos que foram roubar uns molhos de grãos, o dono diz que foram eles, jura que foram, mas eles dizem que João Mau-Tempo é testemunha como não roubaram , olhe, é lá uma confusão que nem mesmo eu entendo (...)Mas eu que tenho com o caso, não sou visto nem achado nesses assuntos (...) Não tenha você medo, chega lá, diz o que tem a dizer e vem-se embora. (...) Sabe para que foi chamado ao posto. (...) Então não sabe o que fez lá por Vendas Novas, Isso deve de ser engano, que eu não fiz nada, Pois olhe que tenho aqui uma ordem do posto de Vendas Novas para o prender por comunista. (...) Ó Senhor, não me diga tal coisa, há quatro anos que me deixei desses trabalhos (...) Então, Senhor Cabo, peço-lhe o favor de mandar avisar a minha mulher que venha falar comigo. (...) Não senhor, a sua mulher não pode falar consigo, nem ela nem ninguém, você está com título de perigoso, diga o que quer que vai uma praça buscar-lhe o que precisar lá de sua casa. (...)


Pág.166 (...) Por causa dum canalha destes, dum paneleiro comunista, não vou eu hoje à missa» (...) «Mas o Senhor vá à missa, que eu vou consigo». (...) «Ó comunista, pulha, paneleiro», e mais nomes indecentes me chamou, dando-me uns encontrões e dizendo-me «cale-se já, senão vai ali para o trapézio»; abrindo uma gaveta da secretária tirou uma pistola, um cassetete e uma régua forte e disse: «Vês o que aqui está? Isto é para servir para contares a história» Começou nesse momento o castigo da estátua. (...) Que mágoas, que tristeza, eu tinha dentro da minha alma, causadas pelos homens da Pide, pelos guardas de Salazar, por aqueles que vão todos os dias à igreja bater no peito, sem religião, religiosos de tacho, pois são uns criminosos devassadores da humanidade. De três em três horas eram revezados, aqueles vultos desumanos, para me moerem a minha alma, desfazendo o meu físico, dirigindo-se a mim com palavras desumanas: «Então o que andavas a fazer na tua terra?», «Andava a trabalhar para ganhar para alimentar a minha família», «Era trabalhar ou andavas por lá a espalhar avantes? Então andavas lá a levar nas nádegas? Eras tu e os teus camaradas que eram amantes do Dioguinho, para ele lhes ensinar a doutrina comunista, não é verdade? Pois se queres ir para o Lavre ver os teus filhos conta a história, não encubras os teus amigos com quem tu fazes reuniões, lembra-te da tua família e liberdade. Vá conta lá a tua história. Aqueles canalhas, ladrões, não nos dão o que a gente quer, mas nós acabamos-lhes com a existência, atiçamos fogo às propriedades, fazemos distúrbios contra eles e as leis de Salazar, então é assim que vocês pensam fazer? Vá lá, diz a verdade, comunista, não encubras. Se contares a história vais-te embora já amanhã para o Lavre, para a companhia dos teus filhos.» No fim de tantas palavras ofensivas e vergonhosas, que é vergonha dizê-las e escrevê-las, então lhes respondi ao interrogatório: «Senhor, a minha história está contada.» (...)


Pág. 248, 249 (...) Por causa deste canalha, deste comunista sacana, não vou hoje à missa» (...) Ó senhor, não perca a missa por minha causa, se quiser eu vou consigo (...) Pulha, paneleiro, cabrão, rabicho, (...) cala-te já senão vais ali para o trapézio, (...) João Mau-Tempo (...) vê o inspector Paveia dirigir-se para uma mesa, (...) e tirar da da gaveta uma pistola, um cacete e uma régua grossa (...) Vês isto, é para ti, se não contares a história toda..." De três em três horas sai um e vem outro (...) Então que andavas lá a fazer na tua terra, Andava a trabalhar para ganhar com que alimentar a minha família (...) A trabalhar, ou a espalhar avantes? (...) Andavas a levar no cu, tu e os teus amigos davam o cu ao controleiro para ele lhes ensinar a doutrina de Moscovo, é isso, pois se queres voltar para Monte Lavre e tornar a ver os teus filhos conta a história, não encubras os teus amigalhaços com quem fazias reuniões, lembra-te da tua família e da liberdade. (...) Vá conta lá a tua história. Como é que vocês dizem, Aqueles canalhas, aqueles ladrões do governo, não nos dão aquilo que a gente quer, mas vamos acabar-lhes com a existência, tantos distúrbios faremos contra eles e contra as leis de Salazar, é assim que vocês dizem lá uns com os outros, é assim que pensam fazer? Vá lá, diz a verdade, comunista, não encubras. Se contares a história vais-te embora já amanhã para o Monte Lavre, para a companhia dos teus filhos.» (...) Senhor, a minha história está contada (...)

Pergunto: será isto tradução, será trasladação, será plágio, será roubo?
Não me preocupo muito com a escolha do termo mais adequado.
O que me preocupa é a atitude, são os actos.
E pergunto: Porque é que Saramago se limitou a dedicar o seu livro, apenas nas primeiras edições, a quem lhe passou para as mãos o original (único exemplar) do seu manuscrito, dedicatória essa em que constavam outras pessoas, sem que nenhum prefácio ou qualquer nota fizesse referência à obra que serviu de argumento para o seu romance?
Porque é que não se empenhou, de imediato, em publicar / divulgar o manuscrito que tanto o entusiasmou, antes mesmo de concluído o seu?
Porque é que, quando finalmente resolveu publicar o livro de João Domingos Serra, não transcreveu a totalidade do manuscrito, eliminando a parte final, em que, já muito doente, ele ditava o texto ao seu filho António.
Será porque nessas últimas linhas ele se queixava com amargura:
pena foi que o camarada José Saramago depressa se esquecesse que em Lavre no Alentejo existia um camarada que lhe franqueou a sua casa lhe deu alguma ajuda para que ganhasse milhões com a venda do seu livro e continuava a viver de esmolas dos filhos, doente à porta da morte, nunca mais teve direito a uma palavra de conforto, ou interesse para saber do seu estado de saúde?

Imaginemos, por hipótese, que Saramago tinha usado da mesma forma que fez com o manuscrito de João Serra, o argumento de um manuscrito de um dos tais escritores eruditos, como por exemplo António Lobo Antunes, Mário Cláudio, ou outro qualquer da nossa praça.
Como chamaria a elite cultural a isso?
Como será que se chamaria nesse caso? plágio? Ou roubo?
E porquê?
São perguntas que ficarão, provavelmente sem resposta.


Maria João Ramos


Nota: Não terá razão escritor mexicano Téofilo Huerta Moreno? É uma pergunta, porque apenas vi o artigo publicado por esse escritor que, tal como eu, colocou a par excertos do seu livro Ultimas notícias! (1987) e excertos do livro de Saramago As Intermitências da Morte (2005).
E as afirmações de Álvaro de Sousa Holstein acerca das semelhanças entre os livros A Jangada de Pedra e Evangelho segundo Jesus Cristo e, respectivamente, Os Robison do Espaço e Je vous salut Marie de Francis Carsac, terão algum fundamento?
Já quanto ao artigo do The Guardian de Mike Davis, Pilar del Rio justificou a falta das aspas no artigo de Saramago com uma desconfiguração do blog que as terá eliminado. (!!!)