terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os academismos da actualidade


Os academismos da actualidade


Na segunda metade do século XIX início do século XX, enquanto os movimentos de vanguarda revolucionavam a Arte, proliferavam académicos desesperadamente agarrados às fórmulas neo-clássicas e românticas, por vezes ensinados por verdadeiros artistas (tal como Ingres). Temas retirados da mitologia clássica, composições teatrais, e uma pintura de um apuramento técnico, por vezes irrepreensível, estava lá quase tudo, menos a razão de ser dessas obras, o significado, o valor artístico.
Habituámo-nos a chamar academismos às obras, desse período histórico, mas os academismos estão sempre presentes e, talvez nunca tanto como hoje, ao mesmo tempo que as pesquisas mais inovadoras se vão, arduamente, desenvolvendo na sombra.
Ontem como hoje essas obras são muito bem aceites pelo público, o que não deixa de ser natural. Afinal elas já estão institucionalizadas, estão desprovidas da carga revolucionária, contestatária, inovadora, que caracterizava os estilos que copiam.
O público sente-se até lisonjeado por conviver com obras de arte que não entende, mas que também não o incomodam. Por vezes até são agradáveis à vista, decorativas, mas são, acima de tudo, inócuas.
É por isso que o próprio poder político as aceita e as enquadra na arte pública. É ver objectos minimalistas a embelezar praças públicas, seja nas grandes cidades, seja nas mais periféricas. Há outras a que talvez possamos chamar de neo neo pop, ou melhor, pop fora de prazo de validade, em materiais precários (o que é uma vantagem), infantilmente coloridos (que me perdoem as crianças).
Saem a ganhar os autores desses objectos, que se fazem pagar principescamente, mas saem a ganhar muito mais os políticos que as pagam pois, afinal como propaganda não são assim tão caras e dá-lhes uma imagem de modernidade e de cultura muito conveniente.
Mas os senhores do poder, bem como o público fruidor, precisam de um aval.
Os próprios artistas têm necessidade de dar um enquadramento conceptual àquilo que produzem, mas também de serem lançados no circuito dos compráveis.
É aí que os textos, ou os discursos, sobre as obras adquirem a maior importância, espécie de manual do fruidor, enfim, qualquer coisa que sirva de garantia, que possa ser arremessado ao primeiro incrédulo que tenha a ousadia de dizer: «mas não irá nu, o rei?»
Um destes dias deparei com uma reportagem sobre uma exposição de Design em Berlim, com candeeiros de jovens designers. Dizia o comentador que se tratava de uma piscadela de olho (clin d’oeil) do Design à Arte, uma vez que as obras continham referências simbólicas e, algumas delas, não podiam ser produzidas industrialmente, eram únicas, e ainda porque, digo eu, nem sempre cumpriam com alguns dos requisitos que habitualmente se esperam de objectos funcionais como são, neste caso, os candeeiros.
Só para tentar ilustrar essa ideia, lembro uma colecção de candeeiros, apresentados nessa exposição, feitos em cera e que, naturalmente, com o calor da luz iam derretendo lentamente, pingando gotas de cera, contorcendo-se e deformando-se, criando formas completamente inesperadas.
Mas, até aqui, nada a declarar. Primeiro porque acho que o Design é, ou devia ser, uma forma de Arte. A única diferença, em relação a outras formas de Arte, no Design, como na Arquitectura, é que estas lidam com materiais, formas, dimensões, adequados às funções que vão desempenhar.
Em segundo lugar, porque as propostas mostravam algumas experiências interessantes, a milhas da metodologia de projecto, com uma liberdade de procura de formas que não deve deixar de estar subjacente à criação artística.
De facto, o que me deixou a pensar não foram as obras expostas, mas sim o discurso do comentador. Não que não estivesse à espera daquele tipo de discurso, mais coisa menos coisa: é o do costume. Na Alemanha, em França, em Portugal ou em qualquer outro país, aquele é um discurso padrão.
Não conheço o comentador, nem sequer tomei nota do seu nome, mas também não me parece que isso seja importante. Não pretendo fazer dele bode expiatório de quaisquer culpas, afinal ele teve o poder de me forçar a alinhar as minhas ideias sobre este tema.
Qualquer de nós poderia produzir um discurso semelhante, bastava conhecer a matriz. Com alguma prática, manha e dom da palavra ele sairá mais rebuscado, com os vocábulos que estão mais em voga no meio, deixando de cara à banda os não iniciados.
O mais importante, a ideia que se pretende vender, é sempre a mesma. Trata-se de dourar a pílula, criar uma espécie de descodificação para aquilo que o espectador vê e não entende, mesmo que essa descodificação venha a confundir mais do que esclarecer. Mesmo que a pílula já seja de si dourada, mesmo que a obra valha por si, mesmo assim é preciso criar uma outra obra que acompanhe obrigatoriamente a primeira: o discurso. O discurso qualidade à obra, perante ele o espectador fica a saber que, mesmo não entendendo porquê, a obra é respeitável, faz parte da elite, tal como o seu autor e, claro, o orador.
Mas como é que se constrói esse discurso?
O autor do discurso/texto, colocado perante a obra, deverá antes de mais, certificar-se da sua procedência. Ninguém se arrisca a tecer louvores a uma obra sem saber quem a fez, qual o percurso artístico dessa personalidade, em que meio circula ou, no mínimo, qual o padrinho, aquele que deu o seu aval ao artista e ao seu trabalho.
Numa exposição de jovens artistas, como foi o caso que deu origem a este texto, é o orientador do grupo, o professor, ou mesmo a escola que frequentou ou a galeria que o está a lançar, que vai ter o papel de fiador.
Este primeiro aspecto é indispensável. No entanto, outros não menos importantes são, por vezes, determinantes como pré-requisitos: a classe social a que pertence o artista, o nome da sua família, a Escola em que estudou, os mestres que teve, a nacionalidade, o partido em que vota (se for filiado, tanto melhor).
É com estes dados que se opta por analisar a obra ou, simplesmente, por ignorá-la.
Depois de feito este enquadramento, não da obra mas do artista, torna-se relativamente fácil passar ao texto. Há que procurar alguma semelhança com obras de autores em voga, citar essa particularidade, mencionar a corrente artística em que se inserem, de forma a amparar a obra, integrá-la, dar-lhe razão de existir, e poder, com um mínimo de erro, realizar uma interpretação que surja como adequada. O que já foi dito sobre os consagrados pode ser adaptado ao caso em análise com algumas variantes no que se refere ao dramatismo, carácter social, vigor, dinamismo, esplendor, singeleza, poética… a adjectivação maior ou menor irá depender do grau de reconhecimento já atingido pelo artista ou do interesse que possa haver em promovê-lo.
Bom, mas não tem sido esse o papel dos críticos? Os que inventam os grandes artistas ou ignoram aqueles que, por qualquer motivo, acham mais prudente abafar? São os críticos que habitualmente assumem esse papel, embora hoje em dia essa profissão se esteja a confundir com um conceito mais alargado de estudioso de Arte, investigador, ou com os próprios comissários das exposições.
Pode até acontecer que a análise feita contenha algumas verdades, são evidências numa análise superficial, que pouco interessa se contribui ou não para informar o público. É preciso não resvalar para aspectos mais escorregadios. Assim, a forma como essa obra reflecte, retrata, satiriza ou não o seu momento histórico, a ligação que terá a pesquisas anteriores, bem como a capacidade que possa ter de abrir novos caminhos em aspectos como a representação espacial, a composição ou outros mais ou menos técnicos, a qualidade do desenho, a unidade da obra, a sua coerência, etc., são assuntos que nem chegam a ser abordados.
Mas quem terá então capacidade para fazer essa análise?
Só me parece possível que sejam os próprios artistas, aqueles que tiverem plena consciência do que estão a fazer. Da mesma área ou de outras: artistas plásticos, músicos, cineastas escritores, em qualquer caso, aqueles que se confrontam com um verdadeiro processo criativo estão com certeza muito mais aptos a criticar e a serem criticados com rigor por outros artistas, a partilhar experiências, interrogações, reflexões.
Refiro-me àqueles que estão de facto interessados em desenvolver o seu trabalho seriamente, não aos oportunistas que se dedicam a criar uma mercadoria de acordo com o gosto do mercado actual e, portanto, de êxito garantido, desde que preencha aqueles requisitos a que me referi mais acima, claro.
Esses últimos, por vezes, encarregam-se de louvar a sua criação, apresentando-a segundo os padrões existentes no momento. Eles próprios são incentivados a desenvolver capacidades de oratória e de escrita, desde os bancos da Escola. Se não o tentarem… depois não se queixem. Concorrem com os profissionais da crítica, sobretudo a partir do momento em que se ressuscitou a arte conceptual e seus derivados.
Quando se retoma uma tendência velha como essa, com cinquenta anos, pelo menos (se não contarmos com Marcel Duchamp) nunca pode ser pelos mesmos motivos que ela surgiu no seu tempo. Foi assim que sempre aconteceu com todos os academismos.
No século XX, sobretudo na sua primeira metade, depois dos movimentos do final do século XIX, estavam criadas as condições necessárias para reflectir sobre a própria Arte, dando origem a uma enorme variedade de experiências plásticas. Tudo, ou quase tudo, se pôs em causa e, alguns dos movimentos artísticos daí resultantes deram origem a outros e, a sua influência nas pesquisas subsequentes ainda hoje se faz sentir.
Mas, uma coisa é explorar caminhos abertos por esses pioneiros, seguir ramificações próprias de pesquisas abertas, ou ser influenciado por elas, outra coisa é copiar superficialmente formas, aparências, ideias, que há muito deixaram de fazer sentido.
Porém, as escolas de Belas Artes sempre fomentaram os academismos, no século XIX como na actualidade. Foi nas escolas que, mal foram finalmente afastados definitivamente os academismos vindos do século XIX, (e isso aconteceu já nos finais dos anos 60 do século XX) as pesquisas de carácter conceptual e técnico e os estudos de Arte verdadeiramente sérios foram postos de parte com desprezo, porque não tinham qualquer utilidade na arte actual.
Os academismos prolongam, mecanicamente, os estilos ou tendências para além do seu tempo próprio, utilizando-os como receitas.
Concretizando um pouco mais quanto aos actuais academismos:
Nos anos 60 do século XX a contestação às Artes Plásticas ditas tradicionais, ou seja, aquelas que se manifestavam através da pintura e da escultura, pelo valor mercantilista que se lhes atribuía, levou a uma reflexão sobre a razão da sua existência e a pôr em causa a sua apresentação em museus.
Falava-se da morte da pintura e da escultura, tal como ainda hoje muita gente fala, sem ter em conta que os meios que se utilizam para produzir Arte não determinam, por si só, a evolução da Arte. Hoje é possível pintar através de meios digitais mas, isso não significa a morte da pintura. Seria o mesmo que dizer que o declínio da máquina de escrever tinha levado consigo a literatura.
Uma das formas que assumiu essa contestação foi a Arte Conceptual. Os autores que integravam esta tendência afirmavam que a Ideia se devia sobrepor ao Objecto, que o projecto da obra era mais importante que a sua concretização, podendo mesmo prescindir do objecto. Pretendiam fazer uma arte não artística, isto é, recorrer a meios não artísticos para transmitir a ideia. Um exemplo paradigmático é o trabalho de Joseph Kosuth, One and Three Chairs, de 1965, que coloca lado a lado uma cadeira comum, uma fotografia da mesma cadeira e um excerto do dicionário com a definição de cadeira.
Tal como vinha acontecendo ao longo do século, tratava-se de explorar um outro ângulo da reflexão sobre a Arte, através do caminho que já tinha sido aberto nas primeiras décadas por Marcel Duchamp. Era uma questão premente naquele momento histórico mas, era também uma ideia que, uma vez dita, não havia razão para se continuar a repetir. Mesmo assim, ainda veio a assumir muitas outras formas ao longo dos anos 60 e 70: o mesmo princípio base foi apresentado por meios tão diversos como a Body Art ou a Land Art.
É preciso dizer que estes movimentos estavam muito centrados nos Estados Unidos ou, pelo menos, foram esses os mais divulgados por lá, embora tenham surgido um pouco por toda a parte.
Também é preciso dizer que, reproduzir até à saturação, há 40 anos como hoje, tem uma grande vantagem: é extraordinariamente fácil, não se espera dos artistas que tenham quaisquer conhecimentos dentro das Artes Plásticas. Uma exposição pode ser fabricada de véspera.
Com um bom texto o público ficará a saber que aquilo que ele acabou de ver como, por exemplo, um amontoado disforme de um qualquer material, afinal está carregado de significados, ocultos para a maioria desprevenida e pouco esclarecida, que chama a atenção para um sem número de aspectos sociais da maior importância, que contém um sentido poético inigualável, etc., etc..
Convém ainda dizer que, há 40 anos como hoje, a par destas experiências, coexistem e desenvolvem-se novas formas artísticas dentro da pintura e da escultura, os tais meios tradicionais das artes plásticas.
Uma coisa é, de facto, tradicional nos meios pictórico e escultórico: as ideias que lhe estão subjacentes não estão completas à partida. Dão início ao trabalho e é esse próprio trabalho que se vai fazendo e refazendo, reflectindo sobre si próprio, recriando-se na sua evolução e, no final é então uma obra una e coerente que tem uma linguagem própria, universal, como a música.
Hoje o mundo é bem diferente de há 40 anos. Existem novas realidades, outras acentuam-se adquirindo proporções gigantescas. Um capitalismo apodrecido, mas a espernear vai fazendo ainda mais vítimas, expondo despudoradamente a sua verdadeira face, criando corrupção, insegurança, injustiça social à escala global. 
As cidades são multiculturais e são evidentes os conflitos, mas também a fusões entre essas culturas, dando origem a novas realidades sociais. Os imigrantes tendem a integrar-se, mas integram-se também os autóctones digerindo todos parte da cultura de cada um. Veja-se a música, por exemplo.
São apenas dois exemplos entre os mais evidentes. A Arte não pode deixar de reflectir a realidade do seu tempo.
Como é possível continuar a insistir nas experiências vividas há décadas?
Fala-se em vanguarda e por vezes confunde-se com originalidade, mas a vanguarda está nas pesquisas que os artistas seriamente continuam a desenvolver, absorvendo o fundamental da época em que vivem, sem preocupações com modas.

Faro, 21 de Junho de 2009
Maria João Ramos

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